O espelho de Narciso

sexta-feira, 4 de novembro de 2005

Esta Lisboa que eu amo...

Hoje fiz questão de oferecer um bombom a mim própria!
Num dia passado de sorriso aberto pelas mais pequenas coisas, passar na Lisboa que eu amo foi mais forte do que eu! O apelo das aguarelas da Rua Augusta, do castelo recortado contra o céu azul, do cheiro bom das castanhas assadas no ar tocou o meu coração alfacinha e acabei sentada no Terreiro do Paço a observar o vaivém de turistas e trabalhadores e a saborear uma dúzia de “quentes e boas”.
Enquanto me deixava embalar pelo pulsar da cidade, a minha memória encheu-se de sons, cores e palavras que pintam Lisboa como ela é, extraordinariamente bela e amada. Amalgamada entre Carlos do Carmo e Amália, Ary dos Santos e Fernando Pessoa, surge uma música que acompanhou a minha infância: a de um sketch do teatro de revista “A Prova dos Novos”, onde Marina Mota é um mendigo que fala da sua Lisboa. Se puderem, vejam! Mesmo...
Aqui fica a transcrição:

Os lisboetas ao domingo vão para a praia. Eu como não tenho ‘pingo’ fico numa boa. Sou alfacinha e os da minha laia querem lá saber da praia. Gostam é de Lisboa!
É verdade, senhores, nasci na rua, na rua desta Lisboa que eu amo por tradição. Ouvi cantar a poetas tempos que já lá vão! Corri Alfama, a Ribeira, a Junqueira, a Madragoa. Vi aguarelas tão belas dos pintores desta Lisboa! Ver o Terreiro do Trigo, o Bairro Alto e a Ajuda... Dizem que é velho e antigo, então venham ver comigo as janelas da Maluda.
Vêm pr’aí uns pedantes, bem vestidos, bem falantes, de Nova Iorque e do Rio. Por lá são sempre enganados, nas ruas são assaltados, chegam cá... não dizem ‘pio’! Ah, mas nunca se contradizem, gostam de outras capitais. “Lisboa é suja, é espelunca, só tem droga, marginais”. O que eles não dizem nunca é que lá há muito mais! E dizem sempre os pedantes que Lisboa à beira-mar já não é o que era dantes. Sabem lá o que é gostar! Perguntem aos emigrantes o que sentem ao chegar...
Se a vida aqui não é boa, a cidade não tem culpa. Mas eu... Eu gosto de Lisboa! Se ‘tá mal, peço desculpa.

Eu lá da minha janela vejo a cidade e a cor. Um jovem casa com ela por amor a esse amor. Não andem para aí à toa por dentro dessa Lisboa!
Dizem que é velha e antiga, que belo é Londres, Paris. Bem, por aquilo que diz, viver cá é um horror! Mas quando chegam ao Tejo, mordidinhos de desejo, sentem remorsos e dor.

Lisboa abre uma janela e só não casa com ela quem não sabe o que é amor!

¯¯
Desta janela eu vou sofrer a terra inteira
E a minha rua só acaba se eu quiser
Parto num sonho com a saudade à cabeceira
E quando acordo outra manhã se fez mulher.

E um turbilhão de ideias loucas me devora
Quando me perco meio tonto em teu olhar
Quando me encontro no teu grito que demora
Então eu sei que a hora é certa de te amar.

Voo sobre o céu de Lisboa
Mas não vejo fragatas entre os braços do Tejo
Sonho mas já não há canoas
Nem varinas gaiatas a quem roubar um beijo
Olho, vejo arcadas vazias
Onde falta o Pessoa, o Cesário e o Botto
Lembro, junto ao cais, melodias
Que embalavam Lisboa e recordam Lisboa ‘inda eu era garoto.

Duas colunas a um passo do castelo
E um terreiro onde moraram ilusões
Gatos vadios ainda se batem em duelo
Sob o olhar da velha estátua do Camões.

Um golpe d’asa rasa o cimo do convento
Cruzo a avenida, esqueço a sede no Rossio
Um cacilheiro rasga as águas num lamento
E a noite aos poucos vem deitar-se com o rio.

Voo sobre o céu de Lisboa
Mas não vejo fragatas entre os braços do Tejo
Sonho mas já não há canoas
Nem varinas gaiatas a quem roubar um beijo
Olho, vejo arcadas vazias
Onde falta o Pessoa, o Cesário e o Botto
Lembro, junto ao cais, melodias
Que embalavam Lisboa e recordam Lisboa ‘inda eu era garoto.

Que embalavam Lisboa...
E recordam Lisboa...
‘Inda eu era garoto!
A Prova dos Novos (1988)

1 Comments:

  • Obrigado por este texto... Uma verdadeira relíquia da revista! =D

    By Anonymous Anónimo, at 2/4/08 05:06  

Enviar um comentário

<< Home