O espelho de Narciso

domingo, 9 de janeiro de 2005

Torpor

A noite está misteriosa. A leve névoa é um véu que lhe resguarda o rosto de olhares indiscretos. O manto gelado da indiferença cobre-nos os ombros e rouba-nos o calor do coração. O ar está feérico, com a luz difusa enchendo o mundo de uma crua tonalidade. O frio insinua-se pelas frinchas da janela, invade insidiosamente os nossos corpos, apodera-se das nossas almas. Talvez sejam elas que nos tenham sido roubadas e flutuam, agora, criando este ambiente sobrenatural.
É nesta esfera em que o tempo parece ter parado e toda a vitalidade sugada que eu existo. Parece que neste instante todas as vidas aguardam em suspenso um gesto da noite, um sinal, uma decisão. Flutuo, inconsciente, deixando-me finalmente invadir e controlar por essa força, entregando a minha vontade e capacidade de decisão. Passo, apenas, esperando que a noite me traga respostas. O pensamento fica embaciado, opaco. A respiração está pesada. Os olhos teimam em fechar-se. Mergulho nesse torpor que me retira a lucidez. E, num último lampejo de consciência, apercebo-me que não me importo. Sinto que é assim que quero ficar, deixando-me vogar ao sabor do que a noite ditar e decidir. Talvez erre ao desistir mas já estou cansada de resistir e de recear a responsabilidade. Quero libertar-me dessas amarras e a noite traz-me esse alívio. É cruel, inumano, mas é o que eu preciso...