O espelho de Narciso

terça-feira, 30 de agosto de 2005

Debaixo do tapete

Há coisas na vida que são como os cacos que, em crianças, varremos para debaixo do tapete. Coisas que, inadvertida ou propositadamente, deixamos cair e estilhaçar-se em bocados. Cacos que não temos coragem de expor aos olhos do mundo, pelos quais não queremos responsabilizar-nos ou, simplesmente, aos quais não queremos dar o veredicto final. Varremo-los então para debaixo do tapete, para fora da nossa vista enquanto, ao mesmo tempo, os deixamos bem vivos no nosso pensamento. Os nossos passos sobre a tapeçaria irregular rangem, os cacos continuam no nosso caminho, enchendo-nos a mente de pensamentos, e vivemos com a vontade de levantar a ponta do tapete, sentar no chão com um tubo de cola na mão e juntar os pedacinhos um a um, com dedicação e perseverança.
Há tantas coisas na vida que são como os cacos debaixo do tapete! Os sonhos inalcançáveis, as esperanças quase perdidas, as recordações ambivalentes que nos enchem de saudade e de raiva, as lágrimas, os remorsos, os sorrisos longínquos... Há muitos tapetes que rangem sob os nossos pés, há muitos puzzles que não queremos afastar definitivamente do nosso horizonte, do nosso pensamento. Há muitos cacos escondidos mas não esquecidos que vão minando devagar o nosso espírito e a nossa consciência.
Mas um dia temos de tomar coragem, arregaçar as mangas e levantar todos os tapetes do nosso caminho, sacudir-lhes o pó, varrer os estilhaços e começar uma nova caminhada, de janelas abertas e casa arejada... sem os cacos debaixo do tapete a estorvar cada passo!