O espelho de Narciso

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2005

Desejo e Segurança

Gosto de desafios. O chamamento das novas possibilidades dói-me no corpo e seduz-me. Quero superar-me, voar para além de mim mesma, chegar sempre mais e mais longe. O invulgar é um feitiço que me prende à vontade de lutar pela conquista dos sonhos. E a minha porta está sempre aberta ao inesperado e ao surpreendente. Porque tenho este formigueiro na ponta dos dedos que me dá vontade de estender a mão e tocar a Vida, sentir a Esperança, agarrar o Sonho.
Mas dou por mim no limbo da contradição... Porque esse desejo de me libertar vive paredes meias com a minha necessidade de segurança. E às vezes dou por eles, como duas vizinhas, a discutirem à varanda! Porque se o Desejo faz barulho demais às horas mais incríveis, a Segurança não vive sem o relógio de cuco, que acorda todo o bairro de quarto em quarto de hora. À Segurança enerva-lhe o corrupio de amigos do Desejo, ao Desejo irrita-lhe a mania da Segurança passar o dia a lavar a escada. A Segurança tem vergonha da corda da roupa do Desejo, sempre desarrumada, enquanto o Desejo se ri da corda dela, com a roupa alinhada por tipos e cores. A caixa de correio do Desejo, sempre cheia de folhetos, transtorna a Segurança, que verifica a sua três vezes por dia. E o Desejo não consegue conceber o brilho que a porta da vizinha tem sempre. Ou seja, como bons vizinhos que são, incompreendem-se mutuamente e fazem questão de o mostrar. Mas, incrivelmente, acabam sempre por se dar bem!
Dou por mim a olhar para este emaranhado de emoções e a sorrir. Sim, sou eu, com todas as discussões pequeninas por coisas insignificantes, travando-me mais um instante na decisão de saltar no vazio. Sou eu incompreendendo-me a mim mesma, passando os meus momentos de discussão acesa e de convívio prazenteiro, acabando por troçar da minha segurança e abanando a cabeça face aos meu desejos. Mas vou-me tolerando, boa vizinha de mim mesma, zelando pela escadaria suja pelos meus passos aventureiros e pautando as minhas despreocupações pelo relógio de cuco e verificações à caixa do correio. Vou levando uns dias Segurança e outros Desejo, conforme o vento e a maré. E vou vivendo, assim, no balançar de contradições conciliáveis!