O espelho de Narciso

quarta-feira, 1 de junho de 2005

O amolador

Três ou quatro acordes vibraram no ar... Acordes metálicos, agudos, chamativos. O meu sorriso abriu-se, à medida que as recordações de infância me enchiam a cabeça. E, tal como quando era criança, corri para a janela para ver o amolador passar. Simplesmente ver o meu passado e o passado de um país de pregões... Há quanto tempo não o via passar!
Ainda me lembro da melodia clara que o amolador soprava na harmónica, mesmo debaixo da janela do meu quarto aos Sábados de manhã. Ou, quando se atrasava ou a clientela era muita, encontrava-me à tarde pendurada na janela da cozinha a fazer bolas de sabão. Lembro-me ainda de perguntar à minha mãe que música era aquela, quando ainda não sabia o que fazia aquele senhor com uma mota cheia de instrumentos. Lembro-me de sentir o chamamento da harmónica como um encantamento, que me arrastava e prendia à janela. E gostava de ver chegar as pessoas com as suas facas e tesouras...
Parece tão longe no tempo, esta recordação! Agora a janela é outra, a rua não é plana e eu não preciso de me pôr em “bicos de pés” para chegar ao parapeito e espreitar lá para baixo. Mas o encantamento ainda é o mesmo, ainda são as mesmas notas claras e metálicas que saem da harmónica (ou gaita-de-beiços ou, curiosamente, flauta de amolador, diz o meu dicionário) e nos arrastam, como que hipnotizados, ao seu encontro... E, acima de tudo, têm o encantamento de carregarem em si toda uma tradição quase perdida e que faz parte da nossa cidade, do nosso país, da nossa história. Já dizia o fado: Olhai, senhores / Esta Lisboa de outras eras / Dos cinco réis, das esperas / E das touradas reais / Das festas / Das seculares procissões / Dos populares pregões matinais / Que já não voltam mais!